sexta-feira, 16 de abril de 2010

Leoni, Bernardo e um sorvete de casquinha (por Bruno Sofrozine)


Estava eu aqui quebrando a cabeça tentando achar uma maneira de contar minha estória sem começar com “Era uma vez”. Não vi, porém, como fazê-lo sem considerar esse lugar comum. Alguns contos te dão essa possibilidade. Alguns contos permitem que você fuja dos lugares comuns sem prejudicar a estética da narrativa. Bem... Eu não pretendo, de forma alguma, me render às vontades dos dizeres clássicos. Resta-me então arriscar a beleza da obra dando encetamento à minha historieta com a apresentação do cenário.
Redentor é uma legítima metrópole. Shopping Centers, indústrias, torres empresariais, dentre outras coisas denunciam a contemporaneidade da cidade. Uma cidade onde a miscigenação racial e cultural se faz evidente. Uma cidade também dotada de belezas naturais como parques e belíssimas praias. Redentor, como se pode constatar, nem de longe é uma dessas cidadezinhas de um reino bem distante onde tudo acontece. Contudo, não deixa de ter sua pequena peculiaridade.
Uma vez por ano, desde muito tempo, passa pela região, sempre no mesmo mês, um caminhão de sorvete. Todos em Redentor conhecem a fama dos produtos do sorveteiro. Mitos foram criados sobre os picolés, sorvetes e sobremesas daquele caminhão. Gilmar, o sorveteiro, perdeu as contas de quantas vezes teve seu caminhão quase virado. Não basta ter dinheiro para comprar alguma coisa; tem que ter força física e mental para enfrentar os adversários que querem provar desse néctar tanto quanto você. Uma verdadeira batalha.
No bairro dos Mouros, dois amigos anseiam pela chegada do caminhão. Leoni e Bernardo formulam estratégias para saírem vitoriosos do massacre. Eles pesquisam preços e produtos, pois não haverá tempo para pensar. Na hora H, tudo é definido em questão de segundos e a principal arma é a convicção do que se quer.
Bernardo quer comprar um sorvete de casquinha, mas não porque é o mais barato. Desde antes de ter ciência do preço, ele já tinha certeza do que queria. Bernardo já havia experimentado muitas casquinhas da cidade, mas foi na mão de Lucas, um sorveteiro do bairro dos Mouros, que ele comprou o melhor sorvete de casquinha que já provou. Descobriu naquele momento uma causa pela qual valia à pena a dedicação de uma vida. Bernardo sabe que existe, mas não conhece ninguém que goste tanto de sorvete de casquinha quanto ele. É a primeira vez que Bernardo vai tentar comprar a casquinha do caminhão e os riscos só deixam-no mais excitado. Para ele, isso será mais do que uma conquista pessoal.
Leoni sempre quis comprar um milk-shake até o momento que soube quanto custava. Enquanto o sorvete de Bernardo custava uns R$2, o milk-shake de Leoni custava R$13. Leoni não se importava com o preço desde que ele tivesse dinheiro suficiente que, segundo ele, não tinha. Desesperado diante da chegada do caminhão, ele decidiu que também compraria um sorvete de casquinha. Havia outros produtos mais baratos ou tão baratos quanto, mas ele optou por seguir Bernardo que por sua vez não se importou. Na verdade, mesmo Leoni querendo um milk-shake, se lhe fosse dado um picolé de jiló, ele aceitaria; bastava apenas que fosse do caminhão de Gilmar. Ao contrário de Bernardo que queria o sorvete de casquinha ou nada.
Chegou o caminhão e com ele centenas de pessoas de todos os cantos da cidade. Enquanto Bernardo e Leoni tentavam passar despercebidos pela multidão, via-se por todos os lados violência e gladiação, ouvia-se gritos e gemidos de dor. Foi no momento em que sentiu uma martelada no escroto que Bernardo viu sua esperança morrer. Caiu agonizante ao mesmo tempo em que ouvia o tilintar de suas moedas rolando pelo chão. Com os olhos semicerrados buscou um rosto conhecido; Leoni havia sumido. Estava sozinho. Dominado por uma dor tão insuportável que malmente conseguia abrir os olhos, sentia os vultos de pés em movimento que, por milímetros, erravam seu rosto, mas não erravam seus braços, pernas e tronco. Ouviu um ronco de motor e se perguntou se o caminhão estava indo embora. Sua resposta caiu junto com uma motosserra onde, segundos antes, estivera seu braço esticado. Reunindo as poucas forças que restavam, esgueirou-se entre as pernas frenéticas na direção contrária ao caminhão de sorvete. Sair dali com vida tornou-se sua prioridade.
Longe e salvo do perigo, conseguiu ver que Leoni, com um sorvete de casquinha na mão esquerda, gritava seu nome desesperado. Estava feliz em ver que Leoni tinha conseguido. Leoni viu Bernardo e foi ao seu encontro visivelmente feliz por ver que seu amigo estava bem. Guiado por Leoni, Bernardo reuniu mais forças e sentou-se num banco próximo em tempo de ver um homem alto e musculoso, portando um martelo na mão esquerda e um sorvete de casquinha na direita, ser decapitado por uma foice simplesmente vinda do nada.
Quando o homem caiu aos seus pés, Bernardo, sem nem pensar, pegou a casquinha de sua mão. Antes que pudesse provar, porém, foi interrompido por Leoni que não parava de relatar o quão mágico havia sido seu contato com o sorvete de casquinha. Leoni parecia um desses recém-apaixonados que não conseguem ficar um segundo sem falar do outro. Leoni já até se imaginava fabricando seu próprio sorvete.
Quando Bernardo provou a casquinha, ela não era tão gostosa e ele se perguntou se no próximo ano não deveria tentar comprar outra sobremesa. Um Milk-shake talvez.

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